A indústria portuguesa usufruiu de um desenvolvimento tecnológico avassalador nos últimos anos, sobretudo a partir de meados da década de 90. É muito frequente observar em múltiplas empresas equipamentos do melhor que se produz no mundo, os últimos gritos da tecnologia, normalmente associados aos processos produtivos. No setor, por exemplo, dos processos de fabrico por arranque da apara possuímos máquinas-ferramentas do que melhor se fabrica por esse mundo fora (que desperdício foi o facto do setor ter perdido o comboio no fabrico das máquinas-ferramentas no início dos anos 90, só pelo simples facto da incorporação da eletrónica e da informática nas máquinas-ferramentas). A este desenvolvimento desenfreado, deveremos juntar o investimento vigoroso que as empresas têm feito na área dos softwares dedicados ao fabrico, projeto e desenho assistido por computador. As aplicações informáticas entraram em força no quotidiano das nossas empresas – hoje praticamente nada se produz sem recurso a uma aplicação informática. Este progresso tecnológico tem que ser considerado muito positivo, sem dúvida, mas contrariamente ao que seria expectável, a produtividade não aumentou de acordo ao que seria esperado em função desta revolução tecnológica. Para este não aproveitamento total contribui, em muito, o não investimento em formação, altamente especializada, dos seus quadros técnicos. O que falta então aos recursos humanos das empresas para que se possa tirar um partido bem mais eficaz desta realidade?
O problema tem a sua origem na dificuldade com que as empresas se deparam em definir o perfil técnico adequado a determinadas áreas técnicas. O perfil técnico exigido é muitas vezes analisado à luz do que era necessário face às necessidades industriais dos finais dos anos 80, início dos anos 90. Ficamos por aí na definição dos requisitos. Se nessa altura a maior parte das tarefas técnicas ainda eram «visíveis», com o aparecimento sobretudo das aplicações informáticas e dos equipamentos de comando numérico grande parte dessas tarefas deixaram de ser «observáveis», não sendo mais possível controlar a produtividade de alguém apenas por um controle visual, como era possível antes deste boom tecnológico.
Para um aproveitamento mais assertivo desta revolução tecnológica, o setor precisa urgentemente de um leque mais alargado de profissionais que configurem uma verdadeira elite, que saibam particularmente interpretar de forma correta a tecnologia e o seu desenvolvimento para dela tirar o máximo partido. Se o desenvolvimento tecnológico segue um caminho e não está nas nossas mãos a capacidade de o alterar ou influenciar, então a solução passa por nos adaptar a ele e aprender a extrair dele o maior benefício possível. Estamos num caminho, sem retorno, que nos irá conduzir à tão propalada Indústria 4.0, a quarta revolução industrial, máquinas robotizadas, controladas por softwares cada vez mais complexos e com possibilidade de as personalizarmos de forma quase perfeita, recorrendo a linguagens de programação cada vez mais sofisticadas. As aplicações informáticas serão cada vez mais complexas e completas, que nos irão subtrair, de forma devoradora, as tarefas mais básicas, e que nos irão empurrando para tarefas cada vez mais complexas e sofisticadas.
O perfil técnico de um profissional do setor Metalomecânico do futuro terá que passar forçosamente por alguém que tem componentes bem desenvolvidas na área do raciocino lógico e matemático e que seja capaz de interagir com os diferentes equipamentos e com as diversas aplicações informáticas recorrendo as diferentes linguagens de programação. O domínio das linguagens de programação é muito importante hoje em dia. O domínio desta lógica de comunicação com as máquinas leva-nos a interpretar melhor esta revolução tecnológica e a antecipar melhor o desenvolvimento futuro. Talvez por causa desta espetativa é que nunca tivemos tantas crianças do primeiro ciclo ou até do pré-escolar a aprender linguagens de programação (ver notícia do jornal Público https://www.publico.pt/2016/12/11/sociedade/noticia/ha-mais-de-44-mil-criancas-a-iniciaremse-na-programacao-de-computadores-1754347).
No ensino de hoje já não basta ensinar e levar os alunos/formandos a aprender os conhecimentos base destas tecnologias, é preciso também explicar como elas funcionam, os princípios lógicos do seu desenvolvimento, para que eles absorvam como tudo isto se interliga e nos irá conduzir à quarta revolução industrial. Conhecer e interpretar correctamente as tecnologias é hoje decisivo para atingirmos grandes produtividades com muito menos esforço e dispêndio de energia. A não interpretação correcta da tecnologia significa uma luta inglória, perder tempo com questões sem sentido, defender estratégias produtivas mirabolantes ou irrealizáveis, ou seja, verdadeiros «Dom Quixotes lutando contra os moinhos de vento». Produzir muito não implica forçosamente trabalhar muitas horas, é principalmente saber tirar partido dos recursos que a tecnologia nos coloca à nossa disposição, mas para isso não poderemos continuar a ter profissionais do setor divorciados destas tecnologias, porque não a compreendem ou porque manifestamente não reúnem os predicados adequados à sua interpretação.
Não devemos continuar a transformar tarefas que não nos deveriam demorar mais que alguns minutos em algo para o qual se dedicam dias de trabalho para a sua execução. Esta realidade é muito comum, mas é bem possível, hoje em dia, com o desenvolvimento tecnológico dos últimos anos, produzir muito mais. Como solucionar esta dificuldade no aproveitamento adequado da tecnologia?
É premente apostar cada vez mais na especialização nos diferentes processos produtivos mais comuns do setor. Por exemplo, os alunos do Ensino Superior de Engenharia têm visto nos últimos anos o seu acesso a um curso de engenharia cada vez mais dificultado pelas subidas constantes das médias de acesso ao ensino superior. Por isso, estamos indubitavelmente perante alunos que possuem um grau de excelência considerável, e que com uma especialização específica antes de entrar no setor da metalomecânica se poderiam transformar numa verdadeira elite profissional, que as empresas tanto asseiam para as diferentes áreas técnicas. Em que áreas é que os profissionais do setor se poderiam e deveriam especializar?
- Programação, Maquinação CNC e CAD\CAM – temos no setor muitas empresas que se dedicam ao fabrico de peças, cujo tempo de fabrico é importantíssimo para a sua competitividade. Neste contexto, nesta área seria necessário apostar em algumas vertentes distintas: uma das vertentes essenciais seria apostar fortemente numa especialização numa programação CNC orientada para a programação paramétrica, sem recurso a CAM. Os alunos\formandos teriam que assimilar de forma profunda os conceitos lógicos da programação e o uso de parâmetros (variáveis) e não somente uma programação baseada nos ciclos fixos dos comandos das máquinas ou numa programação «cega» obtida nos softwares de CAM. Esta programação orientada para o conceito de parâmetro (variável) permitiria reduzir drasticamente o tempo na programação CNC em famílias de peças. Deveriam também habituar-se a maquinar e a registar os resultados obtidos em termos de estados de acabamento, tolerâncias e desgaste de ferramentas, etc., para que os parâmetros de corte não fossem meros valores abstratos digitados, mas algo concreto e com resultados perfeitamente expectáveis; na vertente da especialização em CAD/CAM, dever-se-ia apostar sobretudo na especialização na programação em CAD/CAM em máquinas de 4 e 5 eixos e tornos com ferramentas motorizadas. Não é de descurar também neste âmbito a programação CAD/CAM das máquinas de erosão de fio, oxicorte e laser, sobretudo estas que são cada vez mais usadas.
- Projeto Mecânico 3D – nesta área seria importante, numa especialização, dar particular ênfase à automatização dos processos, para acelerar todas as tarefas associadas aos processos de desenho e projeto 3D. As potencialidades da parametrização e o desenvolvimento de macros deveriam ser aqui exploradas de forma exaustiva. Por exemplo, uma das apostas desta especialização seria o desenvolvimento de macros/rotinas que fossem capazes de extrair o máximo de informação possível nos projetos 3D finalizados. Essa informação é hoje em dia vital às diferentes áreas de orçamentação, gestão e planeamento das empresas.
- Metrologia por Coordenadas – nesta área de especialização seria muito importante o uso de instrumentos convencionais diversos, tais como paquímetros, micrómetros, sutas, etc., com especial interesse para a programação e operação de máquinas CMM. A importação dos modelos CAD pela máquina CMM, a definição dos percursos de medição, a saída de relatórios e sobretudo «saber ler» os resultados que permitissem antecipar o erro quando estamos a controlar peças obtidas por arranque de apara. Dizer no final que a peça está «fora de tolerância» não é manifestamente suficiente, é «obrigatório» que sejamos capazes de usar estas máquinas para antecipar o erro. Existe, por vezes, nos profissionais que se dedicam à utilização destes equipamentos, um manifesto desconhecimento dos processos de fabrico a montante. Este défice de conhecimento impede-os que sejam capazes de antecipar o erro, limitando-se a indicar a validade ou não do produto, e isto é manifestamente muito pouco.
- Design Industrial – em Portugal sempre desenvolvemos uma cultura do «forte e feio» e quase sempre descuramos um aspeto que é muito importante, a imagem, a estética, o Design, em tudo aquilo que produzimos, sobretudo no setor da Metalomecânica. Desenvolvemos máquinas fantásticas, feitas à medida do cliente, mas que normalmente são muito pouco apelativas, esteticamente falando, e tudo isto porque descuramos um pouco o Design Industrial na nossa formação\ensino.
- Construção Metálica – nesta área, a especialização deveria dar particular ênfase aos diferentes processos de soldadura, tecnologia da chapa e cálculo matemático específico usado. Por exemplo, nesta área poderia-se recorrer a formulários técnicos desenvolvidos em folhas de cálculo. Uma dica importante para o aumento da produtividade do setor poderia passar por colocar ao lado de cada máquina um computador com uma folha de cálculo, por exemplo o Excel. Trabalhamos num setor em que a matemática e os formulários técnicos se encontram por todo o lado e que as dificuldades que os nossos profissionais experimentam em lidar com elas são um dos grandes entraves ao aumento da nossa produtividade. O uso de formulários personalizados e desenvolvidos a cada operador e máquina seriam um dos fatores que permitiriam uma maior produtividade e sobretudo a eliminação de muitos erros de fabrico.
- Integração dos Novos Processos de Fabrico e reforço de outros já em uso na indústria – Impressão 3D, Laser, Jato de água, etc…. Estamos na fase de do or die em relação ao uso de processos como a impressão 3D. Existem já alguns casos de empresas que perderam o fabrico de algumas peças por arranque de apara para empresas de outros países que as produzem usando já tecnologia de impressão 3D.
- Sistemas de Aperto Múltiplos e Gabaris – nesta área, uma especialização deveria dar particular foco ao aumento da produtividade no fabrico por arranque de apara. Num setor em que muitas das suas empresas se dedicam à produção de peças, apostar no desenvolvimento de novos sistemas de aperto rápidos irá propiciar o aumento da produtividade desse setor da indústria, evitando muitas vezes investimento em novas máquinas.
- Algoritmia, Linguagens de Programação e Desenvolvimento de Aplicações Informáticas específicas – a esmagadora maioria das aplicações de CAD, CAM e até ferramentas de Office, tem interfaces que permitem desenvolver macros que possibilitam acelerar o processo de desenho, modelação 3D ou até o desenvolvimento de macros que criam, de forma rápida, pequenos programas de CNC. No entanto esta área é muito pouco explorada porque os conhecimentos dos profissionais do setor são normalmente reduzidos nesta temática. A programação CNC, por exemplo, permite trabalhar com variáveis (na programação CNC normalmente designadas por parâmetros), mas que são praticamente ignoradas porque os programadores de CNC não dominam as linguagens de programação de alto nível e então ficam-se pelos ciclos pré-definidos das máquinas ou ao recurso intensivo do CAM, desperdiçando a programação paramétrica. No desenho e projeto assistido por computador poderia extrair-se automaticamente a informação muito importante para orçamentação ou para a gestão e planeamento da produção se os operadores de CAD fossem capazes de desenvolver macros que lhes permitissem esse acesso rápido. O domínio de uma linguagem de programação de alto nível tornaria qualquer profissional do setor da metalomecânica mais produtivo e sobretudo mais adaptado à quarta revolução industrial.
- Resistência dos Materiais – esta área, muitas vezes descurada nas empresas, por vezes por falta de conhecimentos e outras porque os métodos de cálculo tradicionais são muito demorados, pode ser muito desenvolvida recorrendo a ferramentas de análise por elementos finitos. Existe uma dificuldade enorme na indústria em usar estas ferramentas informáticas e sobretudo tirar partido dos resultados obtidos. Nesta área seria necessário dotar os nossos profissionais de conhecimentos que lhes permitissem fazer análises qualitativas e quantitativas fiáveis a partir dos resultados obtidos em ferramentas por análise por elementos finitos.
Estas especializações deveriam ser fomentadas e deveriam abranger recém-licenciados dos cursos de engenharia e profissionais do setor com formação profissional ou formação em engenharia. Para que a formação fosse de encontro às necessidades das empresas seria vital, para o sucesso do percurso formativo, a participação efetiva por parte de profissionais de relevo da indústria como formadores especialistas.
Nos recursos técnico-pedagógicos a fornecer neste tipo de especializações teríamos aqui também que seguir um novo caminho e usar uma metodologia diferente na sua conceção. Teria que ser desenvolvida na perspetiva da autoformação para que o aluno pudesse seguir o seu percurso com máxima autonomia possível.